Foto ilustrativa

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sexta-feira, 25 de março de 2011

Série Especial:Consciência de Viver- Capítulo 1



Consciência de Viver



Capítulo 1



O dia finalmente amanheceu, e Ele ainda se revirava na cama.
A escuridão habitual iluminou-se um pouco, e a luz do sol tinha enorme dificuldade de penetrar pela janela de madeira maltratada pelo tempo que parecia nunca passar direito. Mas Ele nem notava.
Tudo ali era antigo, e Ele nem tinha idéia de quanto tempo fazia que estava naquela casa tão decadente. Todas as janelas ficavam fechadas dia e noite, e o ar tépido bem pouco se renovava pelas frestas das janelas.
O quarto dele era enorme, mas como todos os aposentos naquela casa era quase vazio. A sua cama ficava no canto esquerdo ao lado da janela; ao seu lado, havia um pequeno e surrado criado-mudo, com um relógio despertador muito antigo, sem ponteiros, todo enferrujado, com o vidro escurecido, amarelado e quebrado.
Um livro de capa dura muito roída pelas traças, empoeirado, tornando impossível obter qualquer dado que o identificasse, jazia ali, misterioso. A porta do quarto estava mal conservada, com a sua maçaneta enferrujada e engordurada pelo manuseio das mãos imundas de Ele.
O chão de tábuas de madeira muito escura apresentava-se carregado de poeira grossa que se superconcentrava a tal ponto que flutuava no ar, não só por todo o quarto, mas por toda a casa. E este era apenas um dos muitos quartos daquela grande residência que possuía corredores compridos, cozinha espaçosa, diversos banheiros, grandes salas praticamente vazias. Não havia eletricidade; a água era meio verde e malcheirosa; a comida estocada tinha forte odor desagradável, quase cadavérico. Aliás, toda a casa cheirava assim. O ar era pesado e o ambiente, labiríntico.
E foi então que Ele acordou. Abriu os olhos, e a sensação que teve foi de familiaridade. Estava muito bem acostumado com aquele ar abafado e mofado; ele mesmo sempre se sentira assim.
Ele não se lembrava de como havia sido o dia anterior. Isto lhe era difícil: afinal, todos os dias para ele se passavam sem passado, sem quaisquer lembranças ou referências; eram todos iguais. Ele sequer tinha consciência de em que época vivia, qual era sua idade, mas sabia apenas que era velho; pelo menos era assim que se sentia, pois nunca tinha certeza da idéia que fazia de si mesmo.
 Não tinha calendário, nunca abriu as janelas, nunca saiu da residência, vivia só naquela casa quase por toda a vida, e a tremenda sujeira de seu lar refletia a sua própria imundície a que se achava entregue e que para ele era perfeitamente natural. Gostava muito desta sensação, mesmo porque não conhecia outra. Parecia-lhe familiar, confortável e lhe dava certa segurança.
Ainda na cama, tinha vontade de não sair mais de lá.
Seu pijama roto tinha manchas por toda a parte, não se distinguindo mais as listras outrora azuis e brancas; só se via uma espécie de marrom quase negro.
 Ele tinha a aparência de um morto vivo. Sua pele antes alva era de um tom amarelo-pálido e ressecado agora.
Uma dúvida, porém, o atormentava desde muito: estaria ele sentindo-se vivo ou morto? Ou como se estivesse dormindo ou se mantivesse a si mesmo consciente e insone? Ou estaria sonhando permanentemente? Quem sabe?
Ele nunca conseguiu ter certeza da resposta e colocava em dúvida até mesmo se ela realmente existia. Aliás, sua insegurança era tamanha que ele não tinha certeza de coisa alguma. Ele esfregou o nariz na manga do pijama e procurou algum lugar nela que ainda não tivesse restos de secreção nasal para esfregar sua boca, mas acabou optando, após muito procurar inutilmente, por fazê-lo na colcha.
Espreguiçou-se sem saber por que, tentando sem sucesso lembrar-se da última vez que fizera isso ao se levantar.
 Descalço, sentiu o chão frio de madeira esburacada e começou a caminhar devagar. A porta estava escancaradamente aberta, pois ele tinha pavor de portas fechadas. O imenso corredor nunca lhe pareceu tão comprido antes...

 (Por continuar)

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Moderado por Cristiano Camargo