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sábado, 2 de abril de 2011

Série Especial:Consciência de Viver-Episódio 8



Capítulo 8



A partir daí, tudo o que Ele mentalizava aparecia:
- Você não está na posição natural dos de sua espécie. Permaneça de pé nas quatro patas.
O Espectro obedeceu.
Agora sim o esqueleto era muito menos assustador.
- Você tem coração, pulmões, fígado, intestinos, pâncreas e demais glândulas.
Agora o tronco do Espectro continha todos estes órgãos.
- Você tem cérebro e todos os órgãos dos sentidos. Tem nervos...
Tudo isso também lhe foi acrescentado.
- Tem veias, artérias e sangue!
Era horripilante ver o Cavalo com todos os seus órgãos e canalizações sangüíneas para fora, o sistema nervoso também. Mas Ele engoliu em seco, tomou coragem e prosseguiu:
- Também tem músculos.
Estavam todos ali, completamente à mostra.
- E pele e pêlos. Você é um cavalo, não um Espectro!
Diante de Ele estava, então, um belo e saudável puro sangue, reluzindo de vivo, o qual saiu trotando mansamente pela porta e desapareceu. Aliviado, Ele continuou ali sentado, pensativo.
Seu passado. Ele tentava lembrar, esclarecer o seu mistério pessoal: Como viera parar naquela casa? Por que vivia ali? Por que não a deixava? Como era sua família? Uma montanha de perguntas não respondidas. Todas elas se avolumavam em sua mente congestionada de insegurança. Não conseguia, por mais que se esforçasse. Decidiu-se a revirar a casa à procura de lembranças do passado, algo que recordasse alguma coisa. Levantou-se da cadeira e começou a procurar.
Mas sentiu-se cansado. Repentinamente, uma sensação de exaustão, um calor abafado, uma inquietação vaga e estranha tomou conta de seu corpo. Achou melhor continuar a pesquisa mais tarde, já que o tempo naquela casa era perene e interminável. Deitou-se em sua cama e achou que tudo estava quente, incômodo, ele não sabia definir.
Rolava de um lado a outro e não conseguia dormir. Seus pensamentos eram fugazes e indefinidos, não sabia o que estava acontecendo, uma insatisfação que ele não sabia determinar. Permaneceu deitado com o ventre para cima, não antes de retirar a camisa do pijama que ele vestia seguramente há décadas, e que jamais lavou. Na verdade, era a primeira vez que Ele a retirava do corpo. Há pelo menos uma dúzia de anos não via um banho. E, com as mãos na nuca, pensativo ficou.
Nenhum pensamento em particular, estava distraído com o silêncio que percorria seu cérebro. Olhou para as paredes. Contava uma saliência aqui, uma bolhinha ali, e ficava fascinado com as irregularidades da parede - não era lisa! Isso o espantava. Incrédulo, passou a olhar detalhadamente para a sua mão esquerda, retirada de debaixo do travesseiro. E notava cada veia, cada artéria, cada minúscula vilosidade, cada pêlo, e se deliciava com suas infinitas minúcias. Estava reparando em si mesmo!
E isso Ele tampouco fazia há muito, muito tempo. Começou a questionar se aquelas mãos tão perfeitas eram realmente suas. Pareciam belas demais para estarem tão solidamente ligadas a seu corpo. Começou a brincar de dar ordens às diversas partes de seu corpo para movimentar-se, e ficava encantado ao perceber que seu corpo realmente o obedecia. Começou a contar os infinitos grãos de poeira que pairavam no ar, iluminados por um facho de luz solar que penetrava por uma estreita fenda da janela. Achou que eles dançavam de maneira elegante e considerou aquilo o mais belo espetáculo que já presenciou em toda a sua vida.
 Sentia-se seguro, tranqüilo e sossegado agora. Mas aquele calor mordaz que ainda sentia o incomodava. Não tinha vontade de fazer absolutamente nada e a sensação de uma cômoda preguiça lhe invadia o corpo, sonolento naquele marasmo que era estar ali, deitado. Parecia ter todo o tempo do mundo, e tudo podia ficar para depois. Força de vontade? Nenhuma! Não, nem pensar... aliás, vontade de quê?
Sim, o vazio o satisfazia de maneira plena. Neste caso, para que esforço, então? Isso é que não! Ele queria mesmo ficar descansando não se sabe do quê, mas descansando...
Acabou por dormir profundamente. E sonhou.
Ele estava fora de casa, em um espaço aberto, e começou a subir uma escada invisível. Repentinamente, uma placa avisava: Altitude de 2.500 metros. Continuou subindo, e outra placa: 3.500 metros, e mais outra: 8.500 metros!
Só então olhou para baixo, e tudo o que viu foi uma imensidão azul, indefinível. Viu dois longos fios passando pelo céu e, de quando em quando, um poste. E começou a andar pelos fios até avistar centenas de casas lá embaixo. Decidiu-se a descer pelo poste, e foi aí que sentiu vertigens: Tinha medo de altura!
Tudo à sua volta começou a girar qual redemoinho, num furacão imprevisível, com tamanha aceleração que Ele não conseguia mais seguir qualquer referência, e o poste se transformou no mastro de um navio à velas, que rodopiava doidamente, em um redemoinho agora marinho. E viu seus pais e irmãos, cada qual pendurado no mastro de outros navios, todos rodopiando também, e todos pedindo desesperadamente por auxílio. E os redemoinhos continuavam girando velocíssimos. Todos os navios eram negros e estavam em frangalhos, mas não afundavam. Foi quando seus familiares disseram: - Você não está sonhando! Você está morto! Todos nós estamos mortos!
E Ele acordou exasperado. Ainda sentia tonturas, como se tivesse realmente ficado pendurado no mastro de um navio rodopiante. Suas mãos estavam doendo, sobretudo nas articulações e tendões, e sentia câimbras nos braços e pernas, exaustos como se tivesse feito enorme esforço. Caiu da cama, pois estava tão cansado que não conseguiu permanecer de pé ao tentar levantar. Estava absolutamente atônito. O que significava aquele sonho?
Estava vivo, morto ou ainda sonhando? Havia sonhado que havia sonhado? Toda a sua permanência solitária naquela casa teria sido um sonho horrível e interminável, do qual acordaria um dia? Ou essa era uma terrível e assustadora realidade? Ou seria, ainda, a vida após a morte?
Ele não conseguia responder a si mesmo pois, afinal de contas, nem consciência de si ele tinha direito.
Mas quem falou mais alto acabou sendo mesmo o instinto de sobrevivência: a fome. Deixou de debater-se com suas questões intermináveis e foi imediatamente à cozinha. Pegou um pouco de tudo: nozes, doces e biscoitos, tudo estragado há incontáveis anos. Devorou com apetite boa quantidade desses alimentos.
Nunca lhe pareceram tão saborosos. Ele se sentia diferente.
Mais leve, mais novo, não sabia definir. Só sabia que era uma sensação gostosa e que Ele apreciava muito. Notou então a velha caixa no armário novamente.

(Por continuar) 

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