Foto ilustrativa

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domingo, 10 de abril de 2011

Série Especial: Autômato-Capítulo 4

 

Capítulo Quatro

 

 

 

Caiu exausto, enfim. Acabou dormindo.
E sonhou. Tudo estava nebuloso agora. E a Lagarta o atacou. Estava devorando sua cabeça, e as faces dela eram medonhas. Ele se debatia , e lutava com ela furiosamente. Tinha suas pernas, pôs - se em pé e continuou lutando. Ela ouviu os passos do Criador e tentou fugir. Auto, já sem sua cabeça, andava tontamente em círculos, enquanto o Criador pisou na Lagarta, esmagando - a. Pisou em Auto , que era  duro a ponto de  perfurar o pé de seu opressor, o que de fato ocorreu, e surgiu no peito do pé como se fosse um grande dedo que nasceu no lugar errado. O rosto do Criador exprimia grande dor e incomodo, e não conseguia se livrar daquele dedo enorme que se mexia, e que colocou sua cabeça de volta, com o olhar singular da repreensão. Abalado e desequilibrado pela dor, o Criador desabou. Não se mexia ,estava rígido. E que o Criador era assim mesmo, se se dobrasse, caia. Ambos na verdade eram rígidos, mas isto era paradoxal : o Criador, com sua pele reluzente de couro negro e macio, não tinha a menor flexibilidade alem da necessária para os movimentos corporais absolutamente indispensáveis , rígido como ‘arvore.  Já Auto, que era feito de material parecido com o plástico duro era rígido ,claro, mas quando lhe interessava, tornava - se bastante flexível ,‘a ponto de poder torcer o próprio tronco. Um portanto tinha a pele macia , mas não podia se dobrar, o outro tinha a pele dura, mas podia ate se torcer. Auto desvencilhou - se do pé inimigo, e continuou caminhando ate a escuridão invadir o ambiente outra vez.
Finalmente acordou. Sentia - se inseguro por estar longe de sua gaveta - mas, por acaso sentiu-se ele seguro alguma vez em sua existência no seu lugar de origem ou mesmo fora dele?
Fato era , isto sim, que ele se sentiria inseguro em qualquer lugar que ele fosse, e a causa, portanto, não era de modo algum, nem o lugar onde tinha surgido e vivido, nem o lugar, qual seja, que ele estivesse. Precisaria ele olhar dentro de si próprio para achar a fonte de sua insegurança. Só que isto, ah , isto e que o apavorava !
Muito mais simples era fugir, sem saber para onde, e onde fosse, continuava dentro de si, o acompanhava fielmente para seu desespero. Como um cão que tivesse medo da própria cauda, e tentasse fugir dela todas as vezes que ele olhasse para ela, fugindo em círculos, assim era Auto, tipicamente ele próprio , original e singular.

Auto voltou a se arrastar vagarosamente. Lançou seu olhar único para uma das paredes, e estacou repentinamente, aterrado :
Não bastasse ver apenas metade do mundo que o cercava, ainda via só metade de si mesmo, nada mais. Nada mais apavorante ver-se partido ao meio, meio corpo faltando!
Interessante notar que só um braço se levantou, e apenas metade do corpo se alongou. O resto ficou imóvel, paralisado. Seu olho que restava girou apenas 180 graus, assim como sua cabeça o fazia, e voltava, fazia e voltava, e cada meia volta era um susto!
Seu olho finalmente parou. Só que parou com a pupila voltada para baixo e para dentro. Portanto, para a sua agonia, metade do olho via o interior de seu corpo e mente, e a outra metade via seu reflexo espelhado dividido na parede!
Pior, seu olho travou. Ele ficou aterrorizado , e reagiu batendo a cabeça na parede, interminavelmente, cada vez mais rápido, mais e mais!
A parede para a qual tinha olhado, lustrosa e reflexiva qual espelho, mostrava-se insensível ‘as suas cabeçadas, permanecendo intacta. Do mesmo modo que a cabeça nua de Auto, que de tanto avançar no mármore, acabou finalmente por soltar o olho, livre afinal.

Descansava agora, e não sabia para onde olhar. Tudo ali o refletia, com exceção dele mesmo. Como lhe era doloroso ter descoberto que aquele mundo o refletia onde quer que ele fosse ! Confuso, assustado, sentia-se cercado por todos os lados, liberdade tolhida. Mesmo que desconhecesse este termo, embora sentisse o seu significado na  “ pele “ ; só não sabia que aquilo era liberdade.
Ou não?
Quando estava restrito em sua gaveta, não só não ia a lugar algum, como não sentia a menor falta qualquer mobilidade que pudesse ter. Ou melhor, sentia sim, quando o Criador vinha busca - lo, porem ocorre que ele tinha pernas antes, e nesta época ele procurava fugir desta ameaça silenciosa. Quando as perdeu, as valorizou. Mas liberdade não e apenas poder ir e vir, de acordo com a vontade própria, mas poder efetuar qualquer ação ao seu bel prazer, sem restrições de qualquer natureza e de quem fosse. Isto ele pode sentir em certa fase de sua existência.
Finalmente acabou por submergir em sua profunda abstração de sempre, aonde conseguia sentir um certo alivio, e prosseguir sua peregrinação sem destino e distraída que sabe-se la onde o conduziria. Sua distração alias era bem típica dele mesmo : imerso em pensamentos dispersos, desconexos entre si, não faziam qualquer sentido nem a ele mesmo nem a ninguém. Por certo não eram exatamente pensamentos no sentido “ normal “ pelo qual se entende ser um . Ele não mentalizava nem entendia nada.
Mas o forte dele era “ sentir “. Ele sentia, seja física ou mentalmente  ( psicologicamente ) , qualquer coisa, qualquer ato, expressão , ou sentimento demonstrado. Porem ele só recebia, não transmitia nada. Ele não sabia, ou não queria ? Faltava coragem para exteriorizar o que sentia?
Apenas especulações, margem para dúvidas...
Mas explorar e descobrir, isto ainda que inconscientemente, ele gostava. Sensações, diga-se, isto lhe importava e era vital. Ainda que tivesse medo de fazer estas coisas, pois quem explora e descobre, alarga fronteiras, enfrenta o desconhecido. Justamente o que lhe apavorava. Mas e o fascínio?
Não seria por isto que se arrastava tanto, tão longe de sua gaveta?
Passara toda a sua existência absorto explorando ‘a si mesmo ; agora tinha a chance preciosa de explorar um mundo exterior, tão misterioso quanto seu próprio interior, e abstraindo-se, negava a si mesmo esta chance.

(Por continuar) 

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