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terça-feira, 5 de abril de 2011

Série Especial: Consciência de Viver- Capítulo 10




Capítulo 10




A casa era nova, bem conservada. Tudo era novo e fresco ainda. Era de manhã cedinho, e Ele acordou. Saiu do seu quarto e o que encontrou foi a casa vazia.
Estava lá sozinho, abandonado e trancafiado em prisão domiciliar. Estava sozinho e isolado do mundo que agora se resumia simples e unicamente à sua casa. Fora-lhe um golpe miserável do infortúnio. Não conseguia acreditar no que tinha acontecido. Por quê? Não, Ele não conseguia entender, não conseguia achar uma razão. Estava pasmo, desesperado. Tal fora sua surpresa, que não conseguia sequer esboçar reação. Pânico, esta era uma palavra que traduzia seus sentimentos. Pior era sentir que dali para frente o mais temerário ainda estaria por vir, pois o que seria dele? O que seria dele agora?
Estava perdido e condenado à morte e sentenciou a todos como traidores. A confusão mental havia tomado conta dele, e ele não sabia o que pensar. Todos os seus planos para o futuro tinham ido por água abaixo. Ainda pior era a saudade, engolida com esforço garganta abaixo.
 A sensação de solidão absoluta e cruel que feria como faca e o amargor da rejeição sentida na pele, em toda a sua violência. Ninguém o queria, ninguém gostava dele, todos o excluíam.
O tédio. Uma palavra que para muitos pode parecer abstrata, mas para Ele era absolutamente real, levando-o ao desespero enlouquecedor. Naquela manhã, gritou furiosamente por socorro até a exaustão, a plenos pulmões, até ficar quase afônico. Sua garganta doía terrivelmente, mas não tanto quanto as chagas da mágoa imperdoável do ódio insano que malhava loucamente seu cérebro à beira do ataque nervoso por puro congestionamento caótico cerebral. A dor!
 Todo seu corpo parecia doer tanto quanto sua mente enlouquecida e demente. A dor! A dor! Oh, essa dor lancinante que atormentava como vinte mil quimeras até o exaspero!
 Era insuportável, incompreensível, a rasgar sua alma como as garras de um tigre insaciável! Definhava a olhos vistos e, por três noites e três dias, não dormiu, nem comeu, esquecendo a fome, minguando em suas forças, num fraquejamento que o minava e o conduzia perigosamente ao antro da morte que desejava como nunca antes! Havia desistido. Desistido de viver, indignado que estava. Uma miríade de loucuras lhe perpassava a cabeça, tocando as raias da insanidade. Pensamentos desconexos e vazios... Era só o que conseguia. Ajoelhava-se gritando e uivando em desespero avassalador, horríveis gritos animais assustadores e cavernosos. Se o consideravam louco antes, seus familiares não pareciam ter pensado que, agora sim, Ele poderia ser o genuíno retrato da loucura humana. Uma besta em forma humana, ou sub-humana, que grunhia e rosnava pela casa temerariamente. Aquela dolorosa e obscura fase de sua vida não durou muito, mas parecia, para Ele, ter durado décadas.
O sofrimento, eis que eterniza o tempo e a si mesmo, e desvanece a medida relativa do próprio tempo. E a dor é tão mais intensa quanto mais curta sua duração.
Até que tombou exausto e totalmente exaurido de suas forças. Acabou adormecendo pesadamente, pensando que havia morrido finalmente. Mas o que ocorreu simplesmente foi que acordou no dia seguinte com a manhã.
Absolutamente mortificado de fome, procurou alimentar-se rapidamente. Ao deitar-se longamente fazendo a digestão, só então começou a pensar com mais clareza.
Sim, as saudades eram fortíssimas. Sim, seu ressentimento também, bem como a solidão, o isolamento e tudo o mais que sentia. Mas e agora?
Bom! Se estava mesmo sozinho, restava-lhe ainda viver. Tocar para frente uma vida solitária e tentar ser feliz daquela maneira.
Ora, agora quem mandava na casa era ele. Tomaria todas as decisões que quisesse, sem recriminações de ninguém. Paradoxal: tinha encontrado a liberdade que sempre quis em sua nova prisão!
Não havia ninguém para aborrecê-lo. Sem broncas, sem surras, sem brigas. Ele se sentia, sim, o Senhor. E controlava a casa, fazia o que quisesse de seu destino. Era isso: a palavra de ordem passou a ser: Esquecer e Viver!
A partir daquele momento não teria mais passado, seria alguém que nascera do nada absoluto e vivera sempre só, acostumado a isso. Esse foi um processo longo, sofrido e árduo, mas que encontrou sucesso, pois Ele não se lembrava sequer do que acontecera no dia anterior. Na verdade era uma defesa desesperada e prejudicial que tentava, de qualquer modo que fosse, anestesiar a dor.
 E era exatamente assim que estava acontecendo com Ele, ao lembrar daquele primitivo nascimento de sua segunda vida, a morta-viva. Tinha-se transformado sem dúvida em um zumbi. Mas, apesar de todo sofrimento recobrado por sua consciência, Ele continuou lembrando:
Após os primeiros dias de loucura, na ânsia de ter algo o que fazer para espantar a angústia e a solidão, trabalhou arduamente como faxineiro, limpando rigorosamente a casa, deixando-a absolutamente limpa após uma semana. Porém, percebeu que era esforço inútil, pois racionalizou a tal ponto em sua intrincada lógica que a limpeza não lhe servia para nada, era trabalhosa e ingrata, e logo tudo estaria sujo novamente. Além do mais, casa limpa lhe lembrava a casa dos velhos tempos da qual tinha que esquecer, e tanto esforço fazia para eliminar de vez o passado de sua vida! Temia uma recaída aos tempos de loucura e sua conseqüente volta e sabia o quanto este caminho era perigoso. Por isso, passou a deixar tudo imundo, e quanto mais, melhor: retrato mais fiel da sua nova vida. Envergou o pijama que o acompanharia pelas próximas décadas e se esqueceu de que os chuveiros da casa existiam.
Sua barba apareceu nessa época, mas, depois de ficar medonhamente gigantesca e com aparência de uma palha de aço, misteriosamente acabou caindo e não crescia mais com regularidade. Também as suas unhas quase vampirescas terminaram por desistir de crescer. Nas primeiras semanas, Ele tinha verdadeiro pavor de ratos e baratas que infestaram logo a casa; mas depois do primeiro mês Ele passou a não enxergá-los mais. Esses animais asquerosos, na verdade, povoaram a casa em abundância o tempo todo, mas Ele não os via. Assim como nem percebeu a ascensão e queda de sua barba e de suas unhas!
Com o passar do tempo ele foi se ajustando à sua nova realidade, cada dia esquecendo mais um pouco seu passado. E definhando mais e mais, bem aos poucos.
Realmente, Ele agora parecia mesmo um ser humano que murchara, esvaziara, sem alma e de corpo chupado, até se transformar em um saco de pele com ossos e um cérebro apodrecido e ressecado. Era exatamente assim que se sentia.
Ao remexer no cofre, encontrou antigas fotos de sua família ainda bem preservadas. Sua memória voltou em flashes rápidos, mas muito claros. Repentinamente tudo ficou muito claro.
Ele estava pronto e compreendia a si próprio em seu passado. Entendia o porquê de cada um de seus atos. Lembrou-se de como sua infância, a não ser pelas lembranças de seu único amigo, fora triste e mal aproveitada; como lhe era doído seu passado!

(Por continuar) 

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Moderado por Cristiano Camargo