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segunda-feira, 28 de março de 2011

Série Especial:Consciência de Viver-Capítulo 4

Capítulo 4



Mas ele ainda não estava a fim de dormir. Voltou para a cozinha e comeu mais um biscoito esverdeado, tomou um gole de água e começou a imaginar as conversas dos soldados de defesa de sua "cidade". Estava muito entusiasmado, curioso para saber que novas aventuras promoveria com seus personagens. Foi quando viu num canto um velho baralho amarfanhado e tristonho. E inventou novos personagens, desta feita a "Corte do Rei".
 Ele adorava experimentar. Criar novos personagens, projetar suas estruturas, dar-lhes um comportamento, construí-los detalhadamente, até formá-los e lhes dar vida. Planejar lhe dava prazer, moldar estórias fantásticas para eles também.
 Não precisava de companhia. Já tinha a si mesmo como companheiro de solidão. Isso lhe bastava, afinal ele já havia perdido a conta de quantos personagens  criara, e perdia-se no tempo a lembrança de seu último balanço.
Agora, com as cartas do baralho, imaginava que um reino era disputado por quatro reis em seus castelos com suas rainhas, sendo príncipes os valetes. As demais cartas, com exceção do Ás e do Coringa, seriam soldados. Ele misturava as cartas de cada naipe em separado e ao acaso, e confrontava duas cartas escolhidas a esmo: a que tivesse o maior número, vencia; a de menor número era eliminada.
 Dois naipes, ou seja, dois reinos se confrontavam, e o vencedor era desafiado pelo terceiro naipe, até que o último naipe que vencesse fosse proclamado por Ele como detentor do reino disputado. E as horas se passavam. Quando finalmente o Rei de Espadas se viu vencedor da contenda, Ele já estava com tamanho sono que quis finalmente se deitar.
De volta a seu quarto, Ele dormiu. Mas no meio da madrugada acordou sobressaltado.
Estava ocorrendo uma tremenda tempestade. Os trovões trombeteavam, a ventania chicoteava as janelas apodrecidas, os raios e relâmpagos riscavam a escuridão do quarto com um rastilho de luz que teimava em aparecer pelas frestas inúmeras daquela casa, assustadoramente iluminando com seus clarões aquele ambiente atemporal e agonizante.
Ele detestava as tempestades. Não só porque as temia muito, mas também porque quebravam o isolamento do mundo, trazendo-lhe de volta a angústia de confrontar-se com si mesmo e com a vergonha da covardia em não querer sair daquela casa e enfrentar o mundo, com o acomodamento injurioso e maléfico em refugiar-se em seu mundo confortável, o qual dominava e ao qual era cruelmente subjugado com a mesma ferocidade com que julgava dominar aquela residência e seu próprio mundo interior. Quando das tempestades, o mundo e a realidade batiam à sua porta como o mais apavorante dos monstros. Seus medos afloravam, a sua insegurança e toda a sua covardia, além de sua gigantesca preguiça, deixavam cair suas máscaras. Onde conseguir abrigo, se alguém não consegue sequer refugiar-se em si mesmo?
Habitante permanente da penumbra e das sombras, como uma barata que procura se esconder na segurança dos cantos escuros, assim era Ele.
Não estava acostumado a ver sua casa, pois na maior parte do tempo as trevas imperavam pela perenidade.
A visão da casa toda iluminada pelos fenômenos naturais lhe era arrepiante. Caía-lhe pesadamente sobre a cabeça a idéia de o quanto aquela casa era apavorante.
Agora é que não conseguiria mais dormir mesmo. Ficaria insone, estirado naquela cama lúgubre pelo resto da noite. Estava irado com a chuva e desfiava todo um rosário cansativo de impropérios. Mas, de pronto, a tempestade recrudescia a sua fúria e ele se calava com os olhos saltados, todo encolhido em posição fetal.
 Sim, era realmente duro para Ele sentir raiva e não poder expressá-la, diante de uma fúria que bem poderia ser perfeitamente maior do que a sua e que temia enfrentar. Isso lhe calava fundo e o frustrava imensamente. Quanto ele sofria em ter de engolir toda a impotência! Essa sua incapacidade lhe soava como incompetência de tal maneira perversa, surrando tanto a sua mente, aumentando suas dúvidas tão profundamente, que chegava a queimar em suas chagas! Parecia sentir os raios como a lhe penetrar as carnes e a desgastar seu âmago, fora disso impenetrável. Ele padecia a cada ribombar dos trovões, como um terrível golpe a derrubá-lo e, assim, realmente decaía a olhos vistos.
Ele estava transtornado e ansiava desesperadamente para a chuva parar e ter algum alívio em sua mente torturada. Tentava fugir para o Reino das Cartas, mas era inútil. Não conseguia se concentrar em mais nada. E chorou desabaladamente a falta de alguma entidade protetora que o protegesse da tempestade e o confortasse. Só conseguia contemplar o vazio, a ausência, o que só aumentava a sua dor.
 Pior ainda era quando a tempestade durava semanas a fio: era quando todo o seu desespero aumentava acima de qualquer limite.
Mas não foi o caso. Ao amanhecer a chuva parou, e ele acompanhou com os ouvidos até o último pingo cair.
Quase indescritível foi a sensação de alívio que Ele sentiu. E caiu no sono tão profundamente como poucas vezes tinha acontecido em sua vida. Não sabia quantas horas tinha dormido quando acordou.
Parecia ter ficado dias dormindo, e suas costas doíam.
Perambulou pela casa toda desalentadamente. A sensação dominante era do mais puro desânimo. Preguiça, tonteira... não sabia direito o que sentia. Mas sabia que não era nada agradável. As pernas não se firmavam, andavam bamboleantes.
Dirigiu-se instintivamente à cozinha. Era a fome que o chamava.
Desta vez, porém, queria alguma coisa diferente daqueles biscoitos amarfanhados e esverdeados que sempre comia. E descobriu velhas nozes em um pote que já havia sido transparente um dia, mas que jazia amarelado, quase marrom, no alto do velho armário, encerrado em um canto escuro que Ele jamais vasculhara antes. O pesado vidro foi aberto. Só que as nozes estavam de tal modo negras, apodrecidas e mofadas que exalavam um horrendo mau cheiro. Mas Ele as comeu com vontade. Apanhou um copo de vidro escurecido e bebeu sofregamente aquela água putrefata marrom-esverdeada.
 Após fartar-se de mais de uma dúzia de nozes e vários copos d'água, decidiu ir a um recanto poucas vezes visitado da casa: a grande sala de estar. Um imenso espaço quase vazio, como era toda aquela residência. Uma velha e comprida estante de madeira, coberta de teias de aranha, abrigava centenas e centenas de livros antiquíssimos, roídos de traças, mofados, repletos de repugnantes fungos multicoloridos, e entre eles o espaço vazio da obra que ficava na cabeceira da cama dele e que só era lida muito de vez em quando. Como este, todos os outros livros não tinham título nem nome do autor, sequer da editora. Muito menos data.
Em um canto, ficava um antigo sofá bastante surrado.
Espessas e pesadas cortinas escuras tampavam as janelas fechadas, e a porta exterior estava trancada e selada tal como tampa de caixão. Uma trava de madeira maciça a ornava, impossibilitando qualquer abertura externa. Ele se sentou no sofá e abriu um dos livros da estante. Começou a folheá-lo longamente.

(Por continuar) 

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