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domingo, 27 de março de 2011

Série Especial: Consciência de Viver- Capítulo 3




Capítulo 3

Talvez ela, quem sabe, também tivesse no seu íntimo o sonho, um desejo como o dele, que queria de qualquer maneira ser uma caixa, de se tornar um ser humano. Afinal, ela era bonita!
Ocorreu-lhe que alguém mais poderoso poderia guardá-la e protegê-la: Ah, o armário! Quem mais?
 Sim, é claro! O todo poderoso amigo armário, como Ele agora o chamava.
Mas, se ele era assim tão poderoso, não ameaçaria a Ele nem à caixa?
Agora Ele já não sabia mais. Tamanha confusão lhe aumentou ainda mais a dor de cabeça. Pensou em investigar o ruído. Mas não se atrevia a isso. Apavorava-lhe a idéia de pensar quem ou o quê teria produzido tal ruído. Achou que talvez até soubesse o que fosse, mas evitava dizê-lo a si mesmo por puro pavor.
Mas pavor do quê? Ele não queria pensar nisso e começou a ficar irritado. Ordenava a seu cérebro que parasse de pensar nesse assunto. Achou que pensar nisso lhe traria qualquer misterioso malefício, que ele sequer sabia qual e tinha medo de pensar qual seria. Mas teimou que, fosse lá o que fosse, aconteceria mesmo se continuasse insistindo nessas coisas.
Outro ruído. Agora Ele estava realmente apavorado. O silêncio e a escuridão juntos não lhe amedrontavam, pois estava acostumado a não ouvir sequer a própria voz, já que fazia muitos anos que não a soltava. Mas a quebra do silêncio na escuridão o apavorava tremendamente. Sua face exibia o ríctus do horror; seus pêlos e cabelos arrepiavam-se; suas mãos tremiam; suava frio; seu coração disparava; suas pernas bamboleavam no frêmito horripilante de quem espera a morte exasperadamente. Que barulho era aquele?
Seu cérebro continuava a atormentar-lhe ainda mais, desobedecendo-lhe temerariamente. Os castigos que ele esperava por contrariar-se e debater-se tanto mentalmente se avolumavam de modo infinito, com mínimos meandros e detalhes labirínticos tais que sua enxaqueca martelava furiosamente sua cabeça!
Repentinamente, porém, lembrou-se de que o ruído poderia ser apenas alguma coisa insignificante. Sua face ruborizou-se, aliviada da pressão que suas quimeras lhe estavam impondo até então.
Sorriu um sorriso tímido, embora fosse grande a sua sensação de vitória sobre o ruído. Enfim, percebeu que a torneira da pia estava pingando vagarosamente.
Fechou o armário, mas não antes de apanhar alguns biscoitos amarfanhados, moles e malcheirosos de um pote gorduroso e pegajoso. Mastigou-os rapidamente, saiu da cozinha e entrou no corredor.
Viu, então, a porta do toalete aberta e se enfiou lá dentro. De pé, observou os ladrilhos do chão e os azulejos decorados das paredes, admirado, e ponderou que tinha passado muito tempo sem ir lá.
Anotava em sua mente cada detalhe. Os azulejos amarelados, cheios de limo pegajoso, decorados com laços outrora róseos, entrelaçados com dourados que formavam belas flores. Alguns possuíam apenas estrelas rubras e esparsas, e ambos os tipos de decoração se intercalavam caoticamente, sem qualquer sinal de organização. Tanto que, para Ele, tudo aquilo encontrou um nebuloso e misterioso significado: o céu. Ou um céu, nunca se sabe; afinal, o cérebro dele não costumava funcionar com lógica. Mas precisava encontrar um solo para o seu céu imaginário, e isso... bom, isso não lhe foi difícil. Bastou-lhe olhar para o chão. Logo se excluiu desse pequeno universo, sentou-se no chão encardido e se colocou mentalmente como o todo poderoso Narrador. Ele viu os ladrilhos pequeninos e multicoloridos. Agora sim! Aqueles ladrilhos eram a sua cidade. E o limo era o efeito das bombas jogadas pelo pente ensebado (que fazia as vezes de avião). Dentro do "aeroplano" ficavam os "inimigos" – indivíduos inexpressivos, que não tinham outro fim senão destruir a cidade.
Sentado no chão, Ele comandava o espetáculo com o prazer típico de criança nova. Aquilo lhe dava alívio, lhe tranqüilizava a alma e o fazia esquecer todos os problemas, aborrecimentos, enfim, tudo o que lhe era desagradável; um prazer nervoso, que lhe dava a sensação de onipotência e tirania absolutas sobre todas aquelas suas fantasmagóricas criaturas, servas humildes de tão poderoso senhor que manipulava seus destinos ao seu bel prazer, e podiam estar tanto vivas ou mortas... mortas-vivas ou ressuscitadas, bem administradas ou não. Cuidava delas sem moral nem regras fixas; só a vontade momentânea dele é que importava realmente. E a sensação desse poder divino lhe enviesava a mente, em delírios e quimeras de conquista que tornavam seus personagens, fossem quais fossem os status (variáveis da sua vontade) que possuíssem, em escravos humilhados, que lhe exigiam atenção e lhe causavam preocupação, já que Ele era para todos uma mãe déspota e poderia ser um pai tanto paranóico quanto esquizofrênico, conforme seus caprichos ocasionais, mas sempre de maneira devastadora.
Mas, para a desgraça dele, era à noite que suas criaturas podiam rebelar-se, escapar de controle e controlá-lo com uma vingança de tal maneira maligna que transformavam agonia em pesadelo torturante sem fim, mesmo que Ele dissesse que amava suas criaturas e elas dissessem igualmente a mesma coisa, embora o tivessem na conta de um ódio enfurecido como o chicoteio do mais bravio dos furacões, e bombardeavam sua mente dolorida com a força de mil dragões, e malversavam suas desventuras retirando-lhe todo o mais singelo sentido da vida, ao qual se agarrava com uma força vital, instintiva. E o seu desespero agonizante daquelas noites de tortura feroz que não acabavam nunca se acometia das mais delicadas nuances, detalhes de preocupações vazias, que se esmeravam em todos os requintes da crueldade, aprofundando-se cada vez mais no abismo de suas agonias que intencionavam explodir seu cérebro.
Ele sempre achou que, caso se preocupasse demais, sua cabeça voaria pelos ares.
Só acordava no auge dos pesadelos para negar a existência delas – as suas criaturas. E assim passava o dia planejando intrincadamente sua maléfica vingança contra elas, para dias depois colocar seus planos em ação, tão furiosos que promoviam verdadeiras carnificinas em suas personagens. Após todo esse extermínio e depois da terrível sensação de culpa e esvaziamento total de seu poder, as abraçava e ressuscitava hipocritamente amando-as de forma doentia, restabelecendo seu poder divino, algo como um deus falsamente piedoso de suas criaturas vãs, protegendo-as e requerendo delas proteção, tal como fazia com a caixa.
Mas, naquele exato momento, ele estava sentado no chão do banheiro e fazia a conversação do "general" com o "ajudante", em que o primeiro ordenava ao segundo mais um bombardeio sobre a "cidade". E o pente voava de um canto até o outro, despejando "bombas", ou seja, bolinhas de gude estragadas. Ele adorava estas brincadeiras. E, não raras vezes, como fazia exatamente agora, Ele gostava de percorrer os labirintos da casa de pente em punho, como se fossem as viagens e as jornadas do tal avião bombardeiro. E enfrentava mil perigos, fosse o velho aspirador de pó quebrado, a tomada do abajur, o travesseiro mofado etc. Ele se divertia.
E assim passou o dia. No fim, recolocou o pente no lugar como o avião que retorna ao seu hangar, sendo o armário do espelho do banheiro o prédio do quartel general da força aérea da qual fazia parte o maltratado pente. E fez com que o general e o ajudante fossem dormir.

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